Arthur Hirsch com as filhas Mia e Lara, na Islândia (Foto: Divulgação)
Em fevereiro de 2017, a arquiteta Daniela Ruiz, o empresário Arthur Hirsch e as duas filhas do casal, Mia e Lara, de 6 e 5 anos, desmontaram uma casa espaçosa e iluminada no Pacaembu, em São Paulo. Móveis, brinquedos, louças, panelas, lençóis de muitos fios, cobertores fofinhos e tudo mais foram devidamente empacotados e enviados para um guarda-móveis. Cada um deles definiu itens indispensáveis que coubessem em uma mala e em uma mochila. A ideia era ganhar o mundo. Conhecer outras culturas, experimentar viver em endereços nos cinco continentes e tentar trabalhar, aprender e encontrar significados para a vida nos mais variados CEPs deste mundão. O momento não podia ser melhor: Daniela e Arthur estavam com demandas de trabalho possíveis de realizar de qualquer lugar com energia elétrica e wi-fi, e as meninas não tinham a obrigação de estar na escola. As passagens de ida foram compradas, sem data de volta. “Sabíamos que seria um período de muitas adaptações para os quatro, por isso resolvemos começar realizando o sonho de acampar no meio da natureza exuberante, num ambiente totalmente desconhecido para nós”, explica Daniela. A primeira parada da família foi Joanesburgo, na África do Sul – porta para o início de um safári.
Menos de um mês depois, os consultores Carol Soares e Franklin Costa, marido e mulher, sócios da Mana, empresa de pesquisa, planejamento e estratégia em entretenimento, venderam móveis e eletrodomésticos no Facebook, doaram roupas e utensílios para obras de caridade, lençóis para os pais e livros – com dedicatórias – para bons amigos. O que restou foi acondicionado em um depósito de 3m2 no Rio de Janeiro, onde por anos mantiveram um ensolarado apartamento e uma rotina com alimentação saudável e exercícios diários. Com os dois sobrou o peso que conseguiam carregar – ou seja, uma mala média e outra de cabine. O primeiro destino era Austin, nos Estados Unidos, onde tinham um projeto para entregar. “Fazia tempo que mudar as coisas de lugar ou colocar uma cor diferente nas paredes de casa não satisfazia a nossa inquietação por mudanças. Fomos contratados para trabalhar nos Estados Unidos e, depois, em Portugal. Por isso, resolvemos desmontar nossa casa”, conta Carol.
Em Curitiba, em abril do ano passado, Patrícia Finardi e Bertrand Ciavaldini, gerente financeira e engenheiro, respectivamente, deram início a um sonho em comum: compraram um veleiro para viajar o mundo. Depois de 20 anos de trabalho exclusivo para uma montadora de automóveis, os dois, casados desde 2009, queriam ser donos do próprio tempo e passar um ano velejando pelos mares quentes do planeta. Em julho passado, quando fecharam para sempre a casa na capital paranaense, ambos estavam desobrigados de ler e-mails, responder os pedidos dos chefes e começaram de fato a aventura. Na comuna francesa La Rochelle, compraram um veleiro RM1070 de 36 pés, com todos os pequenos luxos que um barco suporta – inclua aí até um aspirador de pó. “Achava que barco era como carro: bastava virar a chave e sair velejando. Ledo engano. Apesar de ser um barco de série, nosso veleiro é puro artesanato e precisava ser testado antes da viagem”, conta Patrícia.
Daniela Ruiz com as filhas num campo de chá no Srilanka (Foto: Divulgação/ Arquivo Pessoal)
O estilo de vida dessas três famílias – um nomadismo em sintonia com o século 21 – já tem muitos adeptos e fontes de inspiração. A maior delas é o sociólogo francês Michel Maffesoli, professor emérito da Universidade Descartes, em Paris. Além dele, há uma extensa lista de poemas, músicas e obras de ficção que abordam o novo modo de viver. Em seu livro Sobre o Nomadismo: Vagabundagens Pós-Modernas, Maffesoli explica que a tendência é um sintoma da pós-modernidade e se caracteriza por uma necessidade de romper com padrões de comportamento definidos na Revolução Industrial: um bom emprego, uma casa confortável, um núcleo de vida e um casamento estável. O autor japonês Matsuo Bashô usa da poesia para explicar esse movimento em seu texto Trilha Estreita ao Confim: “Assim que a primavera começou a florescer pelos campos, senti novamente o impulso de seguir errante sob os amplos céus e cruzar os portais de Shirakawa. Os deuses pareciam ter-me possuído a alma, e a estrada parecia convidar-me a novas paragens”.
O festival de inovação South By Southwest (SXSW), que ocorre há mais de duas décadas no mês de março em Austin e é reconhecidamente um ímã de tendências, também já reagiu ao fenômeno. Dos projetos inscritos para o Panel Picker deste ano, 210 painéis são sobre algum aspecto decorrente do nomadismo. Em tempo, Panel Picker é o setor do festival em que ilustres desconhecidos apresentam temas de palestras que, dependendo de uma votação do público, ganham um horário no evento.
Voltando aos nossos nômades, um ano depois, Daniela, Arthur, Mia e Lara tinham morado em 63 casas, passado por 52 cidades, 12 países e cinco continentes. No momento, estão se readaptando à rotina de São Paulo. Carol e Franklin estão em Bancoc, na Tailândia, e ainda não pensam em ter residência fixa. Em 335 dias viveram e trabalharam em 16 cidades dos Estados Unidos, da Europa, Ásia e de cinco capitais brasileiras. Depois de muitos testes, Patrícia e Bertrand começaram em outubro passado a travessia do oceano Atlântico, passaram por quatro portos em Portugal e seguiram pelas Ilhas Canárias, Cabo Verde e Santa Lúcia. Agora estão na Martinica, dando retoques no barco para ficarem os próximos meses velejando pelo Caribe.
Patrícia Finardi na Martinica (Foto: Divulgação/ Arquivo Pessoal)
No caminho, todos descobriram que na vida de aventureiros nem tudo é prazer. “Trabalho é trabalho: em qualquer lugar do globo, exige tempo, dedicação, foco”, diz Carol. “Aprendemos que é difícil combinar encontro com amigos com prazos de entregas e que, mesmo em diferentes partes do mundo, tem um dia que queremos passar embaixo das cobertas assistindo à Netflix, comendo uma boa massa com molho de tomates e queijo.”
Além de uma experiência inesquecível, fotos incríves, uma pele mais bronzeada e a capacidade de adaptação, todos acordaram para talentos que não sabiam ter. “Descobri que posso ficar horas sem fazer nada, olhando o horizonte e pensando no presente, futuro ou passado”, conta Patrícia. “Passei a dar valor a cada momento e perceber que eles são únicos”, conta Arthur.
Leveza e encontros inesperados também estão no cardápio dos bate-papos com as três famílias. “Tínhamos alugado um apartamento pelo Airbnb e quando tocamos a campainha ninguém atendeu. Já estava como texto da reclamação escrito na minha cabeça quando o dono do imóvel apareceu dizendo que os ocupantes da casa tinham atrasado a saída e que a faxina estava quase concluída para entrarmos”, conta Franklin. A casa havia sido palco de uma festa na noite anterior e, por isso, os hóspedes tinham perdido a hora. Para compensar, deixaram a geladeira cheia de quitutes e bebidas. “Passamos um fim de semana com uma vista maravilhosa e superbem servidos”, lembra Carol.
Patrícia e Bertrand contam que certo dia, em meio à imensidão do Atlântico, esbarraram com amigos dinamarqueses que não viam fazia tempos. “Passamos um dia maravilhoso, comemorando a vida, a amizade e as boas surpresas.” Na manhã seguinte os dois ouviram o som de algo caindo no barco. Ao checarem o convés, descobriram que se tratava de um pão recém-saído do forno do barco dos amigos. “Foi o melhor pão que comemos em alto-mar”, diz Bertrand.
É difícil escolher a melhor história do arsenal de experiências de Daniela, Arthur e suas duas meninas. Da casa que poderia ter sido montada por eles em Copenhage, na Dinamarca, à descoberta de Maboneng, distrito da África do Sul que por conta da arquitetura e de um projeto social inovador transformou uma zona violenta em um ambiente alegre e criativo, passando pelos campos de chá orgânico do Sri Lanka, talvez a passagem por um ryokan no Japão esteja entre as mais legais. “Foi no Google Maps que localizamos a baía de Ago, na cidade de Shima. O plano era parar três dias antes de ir para o Monte Fuji, mas acabamos ficando uma semana”, lembra Daniela. Foi ali que ela diz ter feito uma das maiores descobertas deste período: “Casa é um sentimento. E vai conosco para onde quisermos”.
Globo, via Vogue