Todo evangélico é conservador? A maioria esmagadora da esquerda parece achar que sim. E essa é a casca de banana no caminho de “um discurso verdadeiramente popular para o Brasil”, que tome o segmento pelo que ele de fato é: “plural e cada vez mais negro”.
O vereador de Niterói (RJ) Henrique Vieira, 30, tem dupla credencial para entrar no debate. É pastor da Igreja Batista do Caminho e quadro de um dos principais partidos no espectro progressista do país, o PSOL –que estuda lançá-lo à Assembleia Legislativa do Rio.
Uma possível candidatura sua robusteceria planos da sigla em se aproximar de eleitorados tidos como inclinados a cair no colo da direita. Além de Vieira, o PSOL articula, para o Legislativo, nomes exportados de forças policiais, como o delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone, 53, que tem “hare” tatuado num antebraço e “krishna” no outro.
Em dezembro, o deputado estadual Marcelo Freixo (RJ) conversou com a Folha sobre a necessidade de “abrir um diálogo progressista” com aqueles que a esquerda se acostumou a jogar para escanteio.
“Não acho que evangélicos ou policiais têm que ser tratados como reacionários, porque esse rótulo não diz respeito à cabeça da maioria deles. Muitas vezes a esquerda constrói essas bolhas, que são muito aconchegantes, porque você fica falando entre os iguais. A gente está num momento em que tem que buscar o comum, mais do que o idêntico”, disse.
O pastor Vieira, que teve aula de história com o então professor Freixo no ensino médio, caiu nas graças não só do PSOL. Virou habitué das reuniões do #342, movimento político liderado por Paula Lavigne, e protagoniza um vídeo compartilhado na quarta (10) pelo marido da empresária-ativista, Caetano Veloso.
Nele, diz que “nem todo evangélico é fundamentalista” e tampouco pode ser reduzido “às pregações cheias de ódio em programas de TV e muito menos à lamentável Frente Parlamentar Evangélica”.
Quando Vieira falava nos encontros do #342, “todo mundo ficava gritando, parecia uma plateia”, diz à Folha Lavigne. “Sou ateia e amo ele. Caetano posta vídeo dele, todos postam.”
Outro ponto de confluência do evangélico com o campo progressista: também ator, ele interpreta um frei dominicano em “Marighella”, filme que Wagner Moura (outro convidado frequente da casa de Lavigne) roda sobre o guerrilheiro.
Ser o “crente de esquerda” rende bordoadas dos dois lados, segundo Vieira. “Se você for nas minhas redes sociais, vai ver que a minha igreja é chamada de Igreja Batista do Descaminho ou do Caminho do Inferno, gente falando que era melhor eu morrer, que não sou pastor de verdade, que sou lobo, falso, imoral, herege”, diz.
Progressistas também são reticentes. Vieira conta que, certa vez, saiu ovacionado de uma palestra na Faculdade de Direito da UFRJ. Mas por pouco não falou para uma sala vazia. “Estudantes me procuraram constrangidos: viram na chamada que eu era pastor e tiveram vontade de não ir.”
Para o pastor, é importante desmontar o senso comum que joga todos os evangélicos numa mesma panela reacionária. Televangelistas como Silas Malafaia, por exemplo, não falam por todos.
“Existe um referencial evangélico televisivo e político que é muito extremista. Costumo dizer que são púlpitos cheios de sangue, na medida em que reforçam discursos machistas, homofóbicos e racistas que estimulam violência contra mulheres, LGBTQ e irmãos e irmãs de matriz afrobrasileira.” São o que Vieira define como “amoladores de faca”, que atiçariam e legitimariam ataques.
“Esses militantes de direitos humanos defensores de bandidos… Jesus ouviu a mesma coisa!”, diz o pastor que no Facebook já vislumbrou Deus como uma “Mulher Preta carregando a maior resistência do mundo”, mais o adendo: “Se essa imagem parece incômoda e requerendo mil explicações, é fruto do patriarcado e do racismo”.
Também na rede social celebrou o apoio “por unanimidade”, em assembleia de sua igreja, a ação no Supremo Tribunal Federal para descriminalizar o aborto. “Em canto, orações e debate, decidimos em favor de uma política de defesa da vida, porque a criminalização mata.”
A linha teológica do pastor pode se alocar mais à esquerda do que a maioria evangélica –pesquisa Datafolha de dezembro mostrou, por exemplo, que nesse quinhão religioso 65% acreditam que a mulher deve ser presa por abortar, contra média nacional de 57%.
Mas é importante sublinhar que a experiência evangélica é heterogênea mesmo entre as congregações gigantes, e posições esquerdistas não são encampadas apenas por projetos nanicos, como igrejas inclusivas conduzidas por pastoras transexuais. Pegue uma gigante como a Universal do Poder de Deus, de onde veio o bispo licenciado Marcelo Crivella, prefeito do Rio que venceu Freixo na eleição de 2016.
Em seu discurso de vitória, ele disse “não, não e não à legalização do aborto”. Já o bispo Edir Macedo, fundador da Universal, já se posicionou mais de uma vez a favor da prática.
“A fé que eu professo me impede de exaltar a hipocrisia. O aborto não é a causa do problema, é o efeito. O problema começa antes, na falta de informação, principalmente às camadas financeiramente menos favorecidas”, escreveu em seu blog oito anos atrás.
Folha de São Paulo